Goya
- Anderson Luis da SIlva
- 27 de out. de 2021
- 2 min de leitura
Atualizado: 14 de ago. de 2024

Francisco de Goya estava atônito. A muito já não podia ouvir o mundo em razão de uma doença que aos quarenta e sete anos lhe acometeu. Mas agora o som não lhe faltava. Os estalos, batidas, tilintar de espadas e o ricochetear das balas nas paredes e pedras, os gritos, urros e sussurros, tudo era audível.
Sua visão embaçada mirava as cabeças cortadas e derramadas de seus corpos, o sangue esparramado, o sorriso em bocas e olhos daqueles que abatiam em contraste ao flagelo dolorido dos que ali caiam.
Pouco sabia ele sobre o homem que ajoelhado sob a mira das armas abria os braços em rendição, tal qual a Cristo em sua cruz. Goya imaginava ter visto chagas nas palmas de suas mãos. Talvez fossem apenas borrões de uma imaginação abalada, pois de onde estava muitos detalhes lhe escapavam a total compreensão.
Observava a barbárie recostado a uma parede de pedra ocultado parcialmente pela penumbra do vão.
Aquele três de maio de 1808 terminava trágico. Muitos daqueles que agora rendidos e aguardando a sua vez de morrer, estiveram no dia anterior na insurreição popular. Os heróis que lutaram contra a tirania da ocupação francesa agora convertiam-se em anônimos cadáveres.
Os soldados, cujos rostos ele não conseguia observar, engatilharam as suas armas. O homem, cuja camisa branca parecia acenar como um derradeiro pedido de paz, franze o cenho antecipando a dor. As balas zunem no ar gelado antes de atingem o corpo de seu compatriota, fazendo com que caísse para o lado.
Os soldados franceses como num sincronizado balé movem os canos de suas armas para um lado e para o outro. O cheiro de sangue podia ser sentido, bem como o seu calor viscoso que se acumulava pelo chão de terra batida.
Goya volta o seu olhar para uma imagem que sorrateira observava as execuções assim como ele fazia. Encostada no lado direito da grande pedra onde os homens e mulheres eram abatidos estava uma jovem senhora cujos braços seguravam uma criança.
Ele leva as duas mãos em concha até a sua face, que horrorizada, poderia estar lhe pregando mais uma peça.
Estreita os olhos e tenta uma melhor posição. Sim, ele via. Como poderia ela não ser atingida pelos tiros que se seguiam a poucos passos de sua figura? Francisco Goya não tinha dúvida quanto aquela aparição, tal qual lhe dizia sua inabalada fé, a mãe de todos, a santificada virgem, que parada ali, em silêncio, velava pelos mortos.
O cintilar da luz da lanterna disposta no chão fazia com que as sobras bailassem antes de cair imóveis. Os corpos se amontoavam. A formação militar mantinha-se inabalável, cessando, vez ou outra, os disparos para recarregar as armas com munição.
Um dos soldados, o que estava mais próximo a ele, vira-se apontando repentinamente o longo cano da arma em sua direção. Goya fica paralisado aguardando pelo final. No entanto, o soldado não o vê, retorna a sua posição original lado-a-lado ao seu grupo para continuar com a matança.
Francisco afasta-se sorrateiro. Aquela cena permaneceria em sua memória por longos anos. E se dele dependesse, não seria para nunca mais esquecida.
Acesso às obras em: https://www.museodelprado.es/
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