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Foto do escritorAnderson Luis da SIlva

Apocalipse

Atualizado: 14 de ago.

Muriel era um homem descrente, a vida o fez assim. Viveu os horrores da guerra e sobreviveu as pestes. Tinha como juízo que a vida não havia sido pré-escrita, mas ocorria no desenrolar das escolhas, se tolas, convergiria ao inferno, se sabias tenderia ao paraíso. Tolas abstrações terrenas, segundo ele acreditava.

Ele havia quedado nos ardentes campos postos em chamas e convivido com o diabo em pessoa, noutros tempos, banhou-se nas glamourosas dádivas do divino sem, no entanto, se deparar com Deus.

Ele vivia no que diziam ser o limbo, o vazio existencial onde as almas aguardavam o seu derradeiro julgamento, no entanto, Muriel não era um sujeito triste, mas um declarado adorador das dúvidas, segundo o qual seriam elas os motores do conhecimento. Assim ele permanecia à espreita do que viria, tendendo, quase sempre, a um auspicioso amanhã.

Nem sempre fora um homem de pouca fé, viveu a maior parte da sua vida pelo trato religioso, todos aqueles em que pode um dia adentrar. Cada qual a sua maneira acabava por fazer dele um eterno pecador e, frente a tal certeza, partia em busca de um caminho que possibilitasse a redenção ou a sua definitiva condenação, mas, sem nunca encontrar.

Aquele dia ensolarado trazia um certo frescor, anunciava com a brisa o derradeiro momento da humanidade, o qual assistiria do alto de seu camarote improvisado. Nunca havia se permitido imaginar o fim dos tempos, mas se o fizesse, de certo não seria em um dia como aquele. Mas quem seria ele para debater com os desígnios do criador, que no caso em específico, tornara-se o destruidor.

Calado observava a multidão que seguia amiúde pelas ruas e parques, todos certos de um repetitivo amanhã, mas ele sabia que não, pois aquele era o derradeiro momento do planeta que um dia chamou de casa. Ali estavam eles a observar aquilo que não podiam ver, considerava calado enquanto observava.

Muriel saca seu celular, haveria de gravar para a posteridade o derradeiro momento. Se observa pelo reflexo da tela trincada, a avaria lhe conferia mais rugas do que um dia ele pode contar. Via o seu corpo envelhecido como uma estrada malcuidada, mas não por isso deixavam de por ela trafegar, decerto que em maior cuidado, em verdade em velocidade reduzida, precisos aos desvios necessários àquele percurso. Assim era ele, o caminho entre um ponto e outro, mas vivia incerto quanto a origem e o destino, pois era apenas passagem.

Muriel livra-se das abstrações da mente e volta a sua atenção ao fim dos tempos. Observa o céu que se nega a apresentar o vermelho torrencial das chamas permanecendo límpido em um azul pouco visto. Avista o horizonte em busca de uma tempestade poeirenta a caminho sem, no entanto, encontrar nada que não fosse a reles distorção das formas vista por detrás rotineira evaporação.

Ele se senta para aguardar pelo fim. Abre uma das latas de cerveja que havia gelado especialmente para este evento, brinda a eternidade e bebe um longo e refrescante gole. Passa a mão direita esfregando impacientemente a face. Resmunga e pragueja a impontualidade do criador. Sempre imaginou a ação final como um singelo apertar em um botão vermelho que dispararia os eventos cataclísmicos que durariam dias, talvez anos, até culminarem na completa destruição do planeta. Pelo visto não seria assim; ou seria o criador um jocoso gozador, deixando todos em aventurosa felicidade antes da mudança fatídica do enredo?

Confere o horário em seu relógio de mostrador digital, bebe mais um gole já impaciente com a morosidade dos acontecimentos, acende um cigarro levemente amassado que trazia no bolso da camisa, solta a fumaça ofuscando parcialmente a sua visão, deixa-se tonto pelo tabaco que nunca havia experimentado.

Sua vida havia transcorrido sem grandes emoções, pelo visto o final dela seguiria o mesmo roteiro. Atenta-se para o celular que permanecia gravando o chão rugoso em concreto, interrompe a gravação e o joga de lado. Resolve abrir mais uma cerveja, seu primeiro e derradeiro cigarro já chegava ao final e o mundo permanecia ali alheio ao seu fim em curso.

Muriel debruça-se por sobre o parapeito e observa vertiginosamente a calçada por onde minúsculas formas trafegam em explícito regozijo. Deixa escapar uma gota de saliva que desce verticalmente até sumir de sua visão. Mesmo não podendo observar o impacto, ele sabia que ela havia se derramado no solo quente, de onde evaporaria ascendendo as nuvens em sua derradeira redenção tal qual os corpos.

Seria este o desejo implícito no fim supremo, a queda, o impacto, a sublimação ou o derretimento. Seria ele alçado ao céu ou escorreria pelas galerias profundas rumo ao inferno.

De súbito algo lhe chama a atenção. Se o inferno se localizava nas profundezas terrenas seria este também destruído com o fim iminente do planeta e, se assim fosse, as almas ali contidas seriam perdidas para sempre ou perdoadas? A equação não batia. O apocalipse não deveria ser literalmente o fim do mundo, mas algo que fizesse com que ele não tivesse mais sentido.

Muriel se levanta e caminha pela laje do edifício coçando a cabeça e tentando raciocinar. Fala em voz alta para que ele pudesse se escutar. Apocalipse, origem do termo, busca pelo celular e digita no buscador. Em grego o significado remete a uma descoberta. O apocalipse é uma revelação, conclui impaciente enquanto anda de um lado para o outro.

Ele caminha até o parapeito do edifício novamente. Olha para baixo, uma revelação, repete ele enquanto busca em seu entorno alguma pista. Muriel grita o mais alto possível a pergunta que lhe angustia. Qual revelação? A sua voz segue em ondas rumo ao horizonte para depois regressar em ecos dissonantes.

De súbito uma página de jornal levada pelo vento desce em sinuosos movimentos aterrissando na laje em que ele estava. Muriel caminha cauteloso em direção a ela. Se detém por alguns instantes antes de abaixar para recolhê-la do chão cinzento. O pedaço de jornal trazido pelo ar apresentava as manchetes daquele periódico. Ele senta-se próximo à borda do edifício e analisa o papel em suas mãos.

Conflito armado; PIB; desemprego; pandemia; governo; desmatamento; CPI; fechamento; crise energética; fome; isolamento; miséria; UTI; migrantes; mortos; fundamentalismo; desmonte; aquecimento global; negacionismo; balança comercial; degelo; gafanhotos; desigualdade; tempestade; redes sociais; violência.

Muriel solta o papel deixando que caia no piso ao seu lado enquanto levanta o olhar e perde-se ao longe. Na laje do edifício, duas latas de cerveja, uma ponta de cigarro e um jornal amassado somam-se aos vestígios do apocalipse.

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