Lá estava ele, inerte enquanto observava o ir e vir da multidão naquela tremeluzente tela. A luz amarelada do abajur conferia certa dramaticidade a cena. Seus pés estavam apoiados por sobre a mesa de centro enquanto os seus braços caíam pelas laterais da poltrona. Sua respiração era cadenciada, os olhos vidrados refletiam o brilho da televisão, sua mente em um estado torpe tal qual o seu corpo, o seu mundo.
Levanta-se e caminha cambaleante até o banheiro. Com destreza bate com a ponta dos dedos na parede esquerda, após um breve estalo a luz se acende iluminando o recinto onde formas emergiam do amarelado azulejo.
Observa o seu rosto cansado no espelho trincado, o que traz ao reflexo de sua face uma cicatriz que se inicia no canto superior direito da testa e desce cortando todo o rosto em diagonal até abaixo do maxilar. Ele eleva a mão direita e com as pontas dos dedos percorre o rosto, constata que a marca apresentada na imagem à sua frente não existia na pele, era apenas uma alegoria da vida vivida em metáforas, sinais de uma alma desconectada da atual realidade.
Os dias não eram fáceis, a vida não lhe fora grata, o destino o punira com a perpétua solidão. Ele buscava entender quando tudo havia começado sem, no entanto, chegar a nenhuma plausível conclusão. Ele fora uma pessoa popular nos longínquos tempos de escola, sua juventude fora povoada por festas e muita diversão. Não se achava bonito, mas compensava isso com a sua inerente alegria e um explosivo bom humor, fazendo de si um algo sempre desejado.
Nunca se casou, acreditava na vida liberta das obrigações, deste modo preferiu percorrer o tempo em aventuras ao invés de se ater a um único outro ser. Mas isso não o impediu de namorar e viver por algum tempo, outras histórias, as quais contribuíam para a sua malfadada teoria de que ser só seria para sempre o melhor.
No final dos anos noventa ampliou os seus relacionamentos por meio dos infindáveis bate-papos promovidos nos recém-lançados sites da internet. Isso possibilitou a ampliação exponencial de seu grupo de conhecidos. Ele participava de grupos temáticos, salas definidas por regiões, espaços delimitados pela faixa etária e diversas outras possíveis configurações, sempre sob o criativo pseudônimo, Batman/ZS.
O tempo passou. A evolução das tecnologias digitais fez com que as salas de bate-papo caíssem em desuso, as amizades ali estabelecidas tornaram-se lembranças, as linhas digitadas foram para sempre perdidas nas memórias apagadas dos servidores.
Novos meios emergiram, redes sociais e comunicadores pessoais, trazendo para perto aqueles que na vida não se encontravam, não se viam. O novo século não favorecia o contato dos corpos, mas, em contrapartida, provia a aproximação das almas espalhadas pelo mundo, tudo era conexão.
Com ele não havia sido diferente. Possuía conta nas diversas redes, empenhava-se na retribuição das mensagens postadas nos diversos grupos, mantinha-se permanentemente ocupado em atenção aos seus milhares de novos amigos.
Precisava se fazer notar, assim, colocava um bom-dia animado no grupo de WhatsApp, compartilhava uma notícia que acreditava relevante em sua página no Facebook, postava a imagem de seu café da manhã no Instagram.
Passava os momentos seguintes controlando a ansiedade pelo merecido reconhecimento, um like aquietava a sua alma, comentários permitiam diminutas considerações, o compartilhamento o tornava um pouco mais relevante. No entanto, tudo terminava no breve momento que seguia da publicação, exigindo assim que ele repetisse os processos em fluxo permanente. Sua ausência implicaria em seu esquecimento, o fim de quem era, sua plena e total aniquilação. Ele não possuía outra forma de acesso àqueles que lhe eram caros, a maioria se quer pessoalmente conhecia, deste modo a benção da tecnologia estava na possibilidade da real interação dada somente em tempo de conexão.
Batman/ZS já não existia há muito, usava agora o seu verdadeiro nome. Suas convicções eram determinadas não só por aquilo que ele postava, mas sobretudo por aquilo que curtia e a quem seguia. O mundo havia se tornado mais transparente, e isso lhe parecia bom, não precisava mais conviver com aqueles cujas opiniões ele discordava, bastava excluí-los ou bloqueá-los temporariamente, quem sabe em definitivo. Era isto que para a vida faltava!
Mas tudo isso agora jazia no passado, ele envelhecera e de súbito se viu desempregado. Durante um tempo manteve-se na luta, desfez-se do acumulado, mudou-se para uma região mais barata, buscou em vão por outras oportunidades, tentou manter aquilo do que precisava, se viu no mínimo. Lúgubres pensamentos percorriam seus neurônios abalados pela escassez de café.
Ele vira-se e observa novamente a sala vazia. Imagina-a povoada. Garrafas caídas, cigarros queimando no cinzeiro, os beijos calorosos de casais efêmeros, o amanhecer da madrugada, o acalanto do riso de um estranho, um chute na almofada caída, as memórias diariamente escritas. Flashes de uma imagem distante que um dia ele curtiu, comentou e compartilhou.
O futuro não havia se materializado em naves espaciais, viagens intergalácticas, robôs e a vida eterna. O mundo lá fora resistia cambaleante a violência humana, que paradoxalmente dele ainda dependia. As pessoas ainda iam e viam em suas rotineiras tarefas, compenetradas na construção de suas vidas híbridas, penosas na materialidade, esplêndidas nas espetaculosas redes digitais.
O gotejar da torneira o traz de volta a realidade, era agora um senhor de mais idade, esquecido em um backup qualquer da vida passada. Os tempos eram difíceis. Há muito teve que cancelar a internet e com ela foram os seus amigos, as suas certezas, aquilo que sabia, tudo aquilo que ele imaginou um dia ter tido. Jazia off e assim esquecido.
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