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Brancos e pretos, pretos e brancos

Foto do escritor: Anderson Luis da SIlvaAnderson Luis da SIlva

Atualizado: 21 de mar. de 2024




Diziam que era esquisita. Decerto, normal, não seria - pensava ela em silêncio enquanto contemplava o mar. O dia iniciara claro. O azul do céu somava-se ao também azul das águas do oceano. Solitária em seu momento predileto, ela refletia sobre o que viria adiante. Já não era mais domingo. A semana se erguia a sua frente impondo-lhe a visão dos desafios cotidianos. Se sentia cansada. Seria capaz de aguentar novamente tudo o que viria? De alguma forma, sabia que sim. Afinal sua vida fora constituída nas sucessões dos problemas, bem como, na de suas soluções pouco ortodoxas. Sim, ela era uma pessoa que resolvia as demandas da vida de forma pouco comum. Pelo menos era o que pensava sobre si mesma. Ocorre que nada neste mundo é único. Não há criatividade, mesmo divina, que não replique o já feito anteriormente. Se Deus desenhou o mundo, decerto havia recorrido em parte ao download de recursos em algum banco de imagens celestial. Se aproximar daquilo que na visão da maioria era supremo, a colocava também em uma posição de superioridade em relação aos mortais que caminhavam sonâmbulos ao seu entorno. Ela sabia que em alguma medida também fazia parte daquela tribo destituída do senso. Fingia não saber. Ergue-se abanando a areia que grudaram nos seus glúteos magros. Vira-se e caminha rumo ao calçadão. Sentia-se inquieta. Pressiona com o dedo indicador direito o botão vermelho disposto no poste de metal. O semáforo fecha para os carros permitindo que desfile vigorosa pela faixa de pedestre rumo ao lado oposto da rua. Detém-se defronte a uma vitrine onde podia se ver no reflexo do vidro recentemente limpo. Ajeita os cabelos desgrenhados. Rodopia sobre o próprio eixo parando em uma pose pouco comum aos olhos antagônicos das pessoas. Ela sorri. Caminha desequilibrada pisando sempre no meio das pedras do calçamento. Tal qual uma criança, divertia-se na alternância entre o preto e o branco, vezes entre o branco e o preto. Resmunga algo para o seu interior. Ela sabia conversar consigo mesma. Era extrovertida para as coisas do mundo. Retraída para as questões da alma. Às vezes duvidava que possuía uma. Seria ela um artefato da natureza posto em movimento para causar confusão? Não, ela não gostava de bagunça. Às vezes, sim, mas nestes momentos sabia estar embriagada. Seja pela bebida ou pela vida. Ela gostava de seguir seu rumo, andar sem destino pelo pouco espaço no qual cabia. Não era sempre, mas às vezes burlava as regras e adentrava despropositada a um estabelecimento no qual logo braços fortes e bocas transloucadas a repeliam. Louca! Diziam. Ela ria. Não sabem de nada pobres camaradas. Passa a mão pela testa já lustrosa pelo sol que queimava. Gostava de morar ali. Bairro tranquilo apesar dos dessabores. Deixava para lá, afinal, quem nunca viveu um dia ruim. As vias eram feitas em multidão. Pretos e brancos, brancos e pretos a seguir seus destinos corriqueiros. Pobres almas – pensava. Às vezes gritava. Crianças crescidas que não sabem nada da vida de fato. Vivem a ilusão do futuro. Muitos não chegam a ver o amanhã. Eis o ciclo inevitável da vida – pensa. A fome batia. Deveria encher o bucho para encarar o dia. Gostava de comer na esquina da Av. Atlântica. Comida farta e boa ela sabia. Verei então o que me reserva a sorte – gritou para o mundo a sua frente. Ela caminhava despreocupada. Diferentemente dos outros que corriam no caminhar. Ela não tinha pressa. Sabia que no seu passo dançante chegaria. Alguns buzinavam ao notarem sua espetaculosa imagem. Outros riam de sua desvergonha. Vários desviavam. Poucos se apiedavam. Ela apoia-se em um poste dividindo espaço com os panfletos que nele foram colados. Trago a pessoa amada em trinta dias – ela dizia àqueles que passavam. Divertia-se. Pouco sabia dos lugares além-bairro. Há muito havia se estabelecido naquelas paragens. Sua memória guardava ainda algumas imagens pouco nítidas de um passado, mas o que a preenchia era o seu presente diário. Ah! O futuro nem existe. Ela se agacha e põe-se a chafurdar os sacos empilhados naquela esquina. Não demora para encontrar o que buscava. A felicidade lhe estampa a face. Ela não sabia por que os outros não comiam as torradinhas. Deveria ser coisa da sua sorte, ou da barriga muito cheia daqueles. Senta-se na guia e observa urubus e gaivotas em revoada enquanto faz o seu desjejum. Brancos e pretos, pretos e brancos.

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