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Foto do escritorAnderson Luis da SIlva

Inclusão Digital!

Atualizado: 14 de ago.

Fui um homem que na lida fiz de tudo um pouco. Parede, concreto e cimento, tomei choque em fio desencapado e banho em cano furado. Fiz jardim tal qual paisagem, subi muro e enchi laje. Também ajudei gente carregando carrinho na feira e até passeei com cães e recolhi suas fezes que fertilizavam o gramado alheio. Aprendi desde cedo que ser um seria pouco, por isso me empenhava em ser muitos, mesmo que por vezes eu parecia de fato não ser ninguém.

O mundo não está preparado para reconhecer o feitio do pobre. De certo os modelos de vida bem sucedida fazem coisa que eu mesmo nunca fiz. Sei pouco de conta e escrevo o necessário, na busca constante por um parco salário tive que viver a vida muito cedo somente pelo trabalho.

Benedito, velho sábio lá da obra, certa vez me procurou, dizia ele com domínio de causa.

- Vai ser alguém nesta vida, por favor! O tempo há de passar e quando menos esperar ele se já foi.

Eu dizia, em minha pouca maturidade, que seria no amanhã o dia da oportunidade, mas o amanhã estava sempre ao longe e assim eu seguia humilde guiado pela honestidade ensinada por minha mãe, trilhando meus poucos sonhos pelos caminhos lesos que se punham ao amanhecer de cada nova ocasião.

Enfim o tempo passou ligeiro, tal qual anunciado pelo velho Benedito. Um dia me vi moço, noutro um homem adulto, para em seguida prematuramente adentrar na infância da velhice. Olhar para trás apenas angustiava o pouco do que ainda haveria de vir, assim não caía em remorso pelo não feito, deixava-me enveredar pela vida tal qual a conheci na juventude.

Quando cedo eu acordava saía sem relutar, a certeza de poder ao final de mais um dia para casa poder voltar e nos braços trazer um saco de farinha, feijão, macarrão e arroz. Se desse também traria um bocado de carne, de boi, porco ou galinha, tanto fazia, o importante era o que se tinha e não o que se vinha, pois sou sabedor do esforço necessário à sua realização.

Nunca passei fome, aquela que machuca o estomago vazio, mas privei-me de provar algumas coisas que eu via. Mas digo com lucidez, falta não me fazia, afinal aquilo que não conheço não haveria de trazer penúria, apenas para mim não existia.

O que se passa agora é a impossibilidade de buscar o pouco, meu patrão me mandou embora e os bicos hoje em dia são raros. Mas seguia na fé e na perseverança de que alguém em sua bondade pudesse essa alma trabalhadeira amparar.

Certa vez fui até a cidade, estavam coletando dados lá na associação, uma senhora de cabelos bem cuidados, óculos ancorados na ponta do nariz, boca cor de jaca madura e cílios elevados, me pedia informações para colocar no papel que dizia ser necessário a uma eventual contratação. Ela dizia que chamavam de currículo, nome estranho para um emprego, já tinha ouvido falar, mas nunca parei para nele de fato pensar. Eu de trabalho nunca fugi e assim resolvi encarar aquele novo desafio.

Na vida fiz de tudo senhora, mas não me leve a mal, no papel não tenho o que colocar. Minha intimidade com essa folha é pouca, e não foi por escolha errada ou descaso, apenas não deu tempo de ganhar o pão e estudar.

Veja bem estimada senhora, vai colocar aí que sei fazer massa, emendar fio, vedar cano, assentar tijolo, carpir terreno. Alguém precisa desse tipo de serviço hoje em dia dona? Eu sei que os meninos lá do bairro que chegam da escola mal conseguem oportunidade, eu não sei bem de estudo, isso é verdade, mas posso me esforçar se assim for necessário. Veja minhas mãos calejadas, foi aqui que em verdade a vida escreveu a minha lição.

Ela olhou-me breve por sobre os óculos, voltando em seguida a sua atenção para a tela onde lia e escrevia. João de quê? Data de nascimento? Endereço? Filiação? RG e CPF? Estado Civil? Profissão? Já foi preso João?

A senhora seguia batendo os dedos por sobre as teclas enquanto com certa dificuldade eu respondia às questões que ela me fazia. Confesso aqui entre nós que sentido aquilo tudo não trazia. Pois quem iria ler tal história? Pouco interesse eu deveria despertar, pois sou um personagem um tanto simplório sem muita coisa a acrescentar. Não entendo de livros, mas de causos contados eu sei falar, e no meu caso não haveria tantos que pudessem ilustrar o que fui, em verdade, nem o que sou. Deixei-me pensativo por alguns poucos instantes.

Não expressei tais pensamentos a ela, seguia ali respondendo frente a promessa de uma recolocação, afinal emprego bom se arruma assim, ela dizia.

- Hoje em dia só fazendo um currículo que seja de fato carregado de boa informação. Ouviu, seu João? Ela ria simpática enquanto falava sem me observar.

De súbito a senhora se levanta e caminha até o lado oposto da sala, volta minutos depois com um punhado de folhas na mão.

- Assine aqui. Diz ela apontando para uma linha tracejada no final da página. Eu meio acanhado me atrevi a rabiscar.

- Muito bem senhor João, tudo pronto. Disse ela com entusiasmo.

Perguntei com um sorriso incontido.

- Que maravilha, muito obrigado, quando posso começar dona?

Ela novamente me encara por cima dos óculos e decreta.

- O senhor precisa aguardar. Acesse o site com frequência para verificar o andamento e se há oportunidades que se encaixem em seu perfil. Enviaremos mensagem por WhatsApp se surgir algo mais urgente.

Eu me levantei da cadeira e me virei para sair, mas antes arrisquei uma última e necessária pergunta.

- Dona, e o que é esse tal de seite e waltzap?

A senhora mudou o semblante e me olhou com um certo desdém. Arrumou pela primeira vez os óculos na volumosa e rubra face e disse incisiva.

- Inclusão digital, senhor João, inclusão. Sem mais nada acrescentar, ela se virou para a tela iluminada e chamou por outra senha.

Eu saí dali sem saber o que fazer, guardava em meu peito a esperança de ver atendida as minhas preces. Haveria o Senhor de me indicar o caminho a tal inclusão. Naquele dia caminhei de volta para casa, ou era o ônibus, ou seria o pão. Durante o caminho pensava enquanto observava as pessoas que alheias de mim circulavam pelas ruas.

Antigamente o trabalho se dava no papo honesto entre o empregado e seu patrão, hoje em dia eles me exigem essa tal de inclusão. E quem não tem recurso para comprar um troço desse, como é que faz? Aproveitei as horas em caminhada para sondar pistas por onde eu passava, no entanto, sem nada desanuviar.

Quando enfim cheguei na venda perguntei ao padeiro se ele sabia como fazer, o dito soltou uma gargalhada e seguiu na piada sem que eu pudesse a ela entender. Em casa com a Maria, mãe de meus meninos, fui me consultar. Ela disse que a piada era esse país querer tudo digitalizar. Para a maioria dos que aqui vivem falta o recurso mínimo, mas para eles, os donos do serviço, todo mundo tem que fazer curso para com eles poderem trabalhar.

Perguntei a ela onde ouviu tal sabedoria, me respondeu que na novela que passa todo dia dando-me as costas para o jantar voltar a requentar. Bom! Deixei-me intrigado olhando para a televisão ainda desligada. Sempre achei novela algo sem nenhuma outra função a não ser a de distrair, mas me parece que não, Maria aprendeu por ali, devo assistir aos capítulos também. Quem sabe assim eu consiga enfim obter o emprego pela tal da inclusão e, se não, pelo menos aprendo um pouco mais sobre o mundo lá fora que já me parece estranho e um tanto sem noção.

Olhei pela janela e busquei por uma estrela no céu escuro. Agradeci a luz dada por aquele que tudo sabe.

Obrigado Deus, que eu seja abençoado pela graça do seite, na glória do waltzap e na necessária e desejada inclusão. Amem!

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