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Foto do escritorAnderson Luis da SIlva

Milho aos pombos

Atualizado: 13 de ago.



Os homens são engraçados. Todos eles. Exceção feita a este que vos escreve. Sou um homem sem graça, e aqui estendo tal vocábulo a todos os seus possíveis significados. Nem sempre foi assim, confesso desavergonhadamente. O tempo me lapidou tal qual a imagem e semelhança daquilo que dele vinha. Rugas! Entendem que sou um homem já envelhecido? Isto poderia ter a ver com a idade biológica que carrego em minhas células, mas não é exatamente assim. Sou um velho por opção, ou talvez, por condição. Sempre gostei de ler. Livros diversos; a vida alheia bordada na comicidade e na tragédia; as manchetes que prescindiam textos mal escritos; as paisagens encurtadas das cidades ditas iluminadas; as felicidades exacerbadas nas redes que antecediam os suicídios espetaculosos, por vezes o do corpo, mas sempre o das identidades. Quanto mais eu lia, mais envelhecia. Não há como passar impune ou ileso por isso. Pelo menos não se souber e quiser ler. Idiotas são mais felizes, não tenho dúvidas. Mas como classificar um idiota em tempos em que a idiotice é a condição primordial? Talvez o idiota seja a oposição, e neste caso o estúpido sou eu. Mas tal conclusão encontra amparo na real definição, neste caso o estulto é você que me lê. Talvez você chegue ao final deste texto, afinal deixei minha rabugice muita clara neste preâmbulo. Mas se quiser seguir por sua conta e risco, vá em frente. No entanto, não venha me cobrar depois a falta do aviso. Todos os homens são engraçados. Desde pequenos são constituídos na fantasia. Atualmente ganham seus dispositivos computacionais ainda no berço. Seus pais comemoram os dedinhos deslizando pelas telas com destreza, o olhar movendo-se de um lado ao outro em frenesi, os sorrisos introspectivos daquele serzinho em criação. Vivem cercados de cuidados por vezes contratados, afinal papai e mamãe cuidam muito bem de sua joia comunal. Logo crescem e dançam seus passinhos ensaiados, vivendo a vida como um grande e enfadonho musical. Enchem-se de adereços. Cabelos; olhos; narizes; orelhas; pele; músculos; dentes. Nada do que é naturalmente dado parece ser adequado, todos requerem transformação. Podemos prematuramente pensar que tais modificações os proporcionam diferenciação dentre todos os outros que convivem com eles física e digitalmente. Mas não. Criou-se uma horda que se fosse emoldurada e levada para o início do século XX comporia os salões das vanguardas artísticas. Crescem desprovidos do significado de individualidade mesmo se reservando aos seus quartos escuros, suas cadeiras gamers, seus computadores ligados a internet de onde controlam o movimentar alheio no mundo. Quando enfim se tornam adultos, deparam-se com a vida como ela é, parafraseando aqui saudoso escritor. E como ela é? Poderiam me perguntar e eu responderia em uma só palavra, enfadonha. Repleta de gente vazia e despropositada. Não é uma generalização, mas tal categoria tem aumentado significativamente nos últimos anos. Tenho asco daqueles que se aglomeram nas idas e vindas munidos de seus celulares. É uma ferramenta de comunicação que na contemporaneidade se tornou indispensável à vida civilizadas nas cidades? Sim. Mas por quê? Há muito, lá nos idos da primeira metade do século XX alguns homens se debruçaram a conceber a máquina definitiva, aquilo que viria a se tornar o imperativo em nossas vidas, o nosso par, o nosso complemento biológico, a nossa inteligência. Há três significativos movimentos na história do desenvolvimento das inteligências artificiais. O primeiro sinaliza os esforços para concebê-la. O segundo a percepção de sua impossibilidade. O terceiro é o estratagema derradeiro, na impossibilidade de criar máquinas mais inteligentes que os humanos, vamos transformar os humanos em máquinas. Depois disso é só uma questão de ajuste e reorganização das peças. Sabe aquele bebezinho lindo acoplado ao tablet em seu bercinho branco? Então! Às vezes me pego a pensar no futuro, onde velhos e velhas serão tal qual alegorias esquecidas em um barracão qualquer de uma Escola de Samba já extinta. Onde corpos já cansados pelo tempo não conseguiram mais coreografar os movimentos necessários a aceitação sociocultural. Ou onde, o encurtamento das opções, os colocarão a beira dos fornos de reciclagem. Somos todos adubos em potencial. Toda utopia é acompanhada de uma distopia. Historicamente vimos as utopias sendo utilizadas como instrumentos de sedução ou aceitação e, mais tarde, as distopias como efeito ou conclusão. O amanhã a Deus pertence, diz o crente aos seus irmãos. Tal qual a fé regente implica. Qual a cara e o nome de Deus? Zuck? Benzos? Musk? Gates? Page? Ellison? Ballmer? Talvez uma mistura impensada de cada um destes. Ou seria o Deus derradeiro do antropoceno inominável, impalpável, onipresente, onisciente e senhor de todas as coisas? Ao longo da história, deuses surgiram, foram adorados e morreram. Lamento profundamente o falecimento dos que integravam o panteão grego. Eram tão humanos em suas divindades. Alguns de você dirão, não. Mas isso não me importa. Hoje em dia qualquer imbecil tem opinião. Mas atravesse a perguntar o seu embasamento. Ou quedarão calados, ou acenarão convencidos para a sua telinha de estimação. Vivemos um tempo sem história. A fragilidade das relações não implica o registro, nem a memória, nem o questionamento filosófico. Tudo é palha. E como tal, só alimenta a fogo. Alguns, poucos, me chamariam de ludita contemporâneo. Seria um lisonjeio. Sabiam eram os homens que antecipavam o problema. A ignorância faz com que cada qual se encaminhe ordeiramente para o abatedouro. Não seria de todo ruim se tal comportamento implicasse na aniquilação destes uns, mas tal postura reverbera na coletividade. O seu descaço implica também na minha morte, e na daqueles que eu gostaria de salvar. Isso me deixa ainda mais revoltado com aqueles que circulam alheios ao meu redor. Pobres almas convalidas pela desinformação. Estou aqui sentado em um banco de praça qualquer. Lendo cada um que cruza o meu caminho. Todos iguais. Cheios de si ao mesmo tempo, e na mesma medida, que são tão vazios de si. Não se trata de uma afirmação paradoxal. Eu sei que você não deve ter lido Jean Paul Sartre e nem Hegel. Mas se houvesse lido saberia que na filosofia de Sartre há uma diferença substancial entre o Ser-em-si para o Ser-para-si. Hegel, por sua vez, em resposta a crítica da razão pura de Immanuel Kant, afirma que a experiência humana se desenvolve no tempo. Experiência é, por mais estranho que lhe possa parecer, experienciar. Chupar uma bala sem a retirar da embalagem é o mesmo que viajar pelo google maps, ou se relacionar pelo facebook, ou se apresentar no tiktok. Ahhh! Talvez você refute. — Mas Hegel afirmou que nem toda experiência é empírica, que a metafísica também há de ser considerada. Sim. É claro! Vamos elaborar mais sobre isso, se é que foi uma questão posta por você que talvez ainda esteja lendo. É importante considerar que o termo metafisica surge entre os gregos e descreve literalmente aquilo que vem depois da física, ou seja, as camadas imateriais da percepção humana em relação a concretude do mundo físico no qual habita. A metafísica aborda temas basais sobre a existência, a realidade, a natureza da mente e do corpo, a relação entre o ser e o nada, a identidade, a causalidade, o tempo, o espaço e o universo em si. Ela indaga para além das fronteiras da experiência empírica e das ciências naturais, busca entender os princípios subjacentes que regem o mundo e a nossa compreensão dele. Ahhh! Vem você novamente questionar. Não seria a ambiência imaterial dos meios digitais a materialização das dimensões da metafísica? Ou a possibilidade de um acesso empírico àquilo que antes não era possível? Bom, duvido que você formulasse tal questão, mas levando em conta a minha escrita solitária responderei a minha imaginação. Não. Ser e existência, ou o que significa existir, ser. Essência e atributos, qual a essência de algo e como ela se relaciona com aquilo que é observável. Causa e efeito, quais as origens dos eventos e mudanças, há uma cousa primaria, é determinística ou probabilística. Identidade e mudança, como os objetos e entidades permanecem os mesmos ao longo do tempo a revelia das mudanças que eles experienciam. Tempo e espaço, qual a natureza do tempo e do espaço e se são entidades independentes ou dependentes entre si. Livre-arbítrio e determinismo, somos livres ou condicionados em função de forças externas. Realidade e consciência, qual a relação entre a mente e o mundo exterior, como se dá a percepção da realidade. Veja que estes pontos podem subsidiar discussões quanto aos meios digitais de “interação”, mas não tenha dúvida que nenhuma delas corrobora a sua necessidade, ou a sua neutralidade em relação à condução do homem a seu abismo existencial. É isso, a sociedade observa o mundo do fundo de um profundo buraco. A luz que adentra vem do parco buraco que ainda existe na superfície, mas continuamos a cavar, tornando o nosso buraco cada dia mais profundo e longe da superfície iluminada do mundo. Platão dizia ser uma caverna onde os homens adoravam as sombras projetadas, mas tal analogia já é pouco para a nossa realidade já tão distante dá daquele tempo. Chego ao final desse meu desabafo só. Não acredito que alguém tenha lido até aqui. Se o fez, não espere pelo meu reconhecimento. Foi apenas um acidente. Uma leitura transversal. Um algo a ser esquecido tão logo saia dessa tela e migre em bando para outras tantas que considerem mais quentes. Um suspiro me escapa. Chega de dar milho aos pombos. Irei caminhar.

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