Ele estava ansioso, afinal seria sua primeira vez, nunca tivera a oportunidade do deleite livre daquilo que na vida fora posto como marginal. Seguiu o rito daquela manhã, café, banho e a escolha da roupa no armário. A revelia da costumas rotina algo estava diferente naquele dia, sentia-se excitado ao mesmo tempo que amedrontado, um frio diferente brincava por sua barriga já não tão em forma, os músculos tesos de seu pescoço tornavam os seus movimentos mais letárgicos, cenas disformes em sua mente somavam-se ao que via na banalidade de seu espaço de morada. Grande e desejado dia, pensava ele quando conseguia organizar os pensamentos para em seguida perder-se na lasciva novamente.
Apanha o seu celular e verifica as mensagens no grupo, tudo certo, hoje após o trabalho adentraria a um mundo novo repleto daquilo que não sabia nomear. Um reforço no perfume e ele sai de sua casa observando a rua que se punha nua a sua exploração. Não estava preocupado com o horário apertado, naquele dia seguiria leve pelos caminhos de sempre, deixaria o ar invadir o seu corpo embriagando de oxigênio as suas células em frenesi, permitiria o olhar nos olhos de estranhos, compartilharia no silêncio seus planos pecaminosos, se sentiria um desejado deslocado da turba socialmente construída, seria aquilo que se deseja ser à revelia do sermão, pois hoje era o dia da liberação.
Ele caminha calmamente pelo acesso à estação metroviária, as pessoas ao seu entorno passam apressadas esbarrando vez ou outra em seu corpo lento, prenuncio dos toques, do contato direto e previamente autorizado daqueles que partilham o momento sublime, o cheiro do outro confunde os seus sentidos entorpecidos pela endorfina, a música que toca em seus fones de ouvido faz com que todos integrem um inusitado balé que dança pela cidade enquanto ele passa triunfante. O dia estava morno, em seu corpo aquecido se convertia na mais pura refrescância.
O percurso até o seu escritório se deu em poesia, ele nunca havia se permitido a leitura do mundo por esse ângulo, mas gostou do que viu. Adentrou ao edifício pela grande e pesada porta de metal que adornava a fachada. Cumprimentou o segurança com uma flexão do tronco, tal qual faz um ator a sua plateia. A senhora que trabalhava na recepção sorriu frente a descontração e foi agraciada com um respeitoso beijo na mão. Bom dia, queridos colegas. Grande dia! Dizia ele enquanto se virava nas pontas dos pés e dirigia-se ao elevador em um inusitado bailado.
Ele aperta o número quatorze, trabalhava no treze, mas desceria um lance pelas escadas, não haveria de dar sorte ao azar, não hoje, ri supersticioso enquanto se observa no grande espelho que cobria o fundo da cabine. Aproxima-se do reflexo e solta uma baforada de ar quente que embaça a superfície. Com o indicador direito ele desenha desajeitado um coração atravessado por uma flecha. Complementa seu desenho com algo que em sua percepção seria uma mão retirando a seta libertando o coração daquilo que o agredia. Sorri feliz de sua arte temporária.
O som de um sino indica a chegada ao seu destino. Ele sai da cabine e segue rumo a porta posicionada no lado oposto do corredor, desce pela escadaria mal iluminada, empurra com dificuldade a porta de acesso ao seu andar. Sai para o hall central e segue para o lado esquerdo em direção a porta de vidro que indicava a entrada da empresa onde por anos ganhou o seu pão.
Uma jovem que trabalhava ali como recepcionista deixou de lado o livro que lia e com um sorriso emoldurado em batom lhe desejou bom dia. Pouco criativo ele repetiu o feito anterior e beijou suavemente a mão da moça. Grande dia! Diz ele em entusiasmo virando-se para seguir rumo a sua mesa de trabalho.
Ele se senta e ajeita o corpo na velha reclamona, uma cadeira antiga e barulhenta que a muito lhe servia de assento. Dividia a sala com outras pessoas que, já empenhadas em suas atividades diárias, não deram atenção a sua tardia entrada. Ele liga o computador e abre a primeira gaveta de onde retira um lápis e uma caneta dispondo-os lado a lado por sobre a mesa. Enquanto o equipamento efetua as rotinas preliminares, ele brinca despindo a caneta de sua tampinha plástica e a fazendo beijar a ponta aguda do lápis amarelo. Ri de sua infantilidade aflorada naquele dia. Grande dia!
A manhã passa na velocidade rotineira de dias apinhados, pontualmente as doze horas ele sai para almoçar, decide ir só, pois precisava refletir sobre o que viria. Assim caminha cambaleante sob o sol escaldante rumo uma pequena lanchonete localizada no entroncamento entre as duas principais avenidas, ali haveria de comer alguma coisa leve e sem pompa, seu corpo necessitava estar nutrido sem, no entanto, tornar-se moroso pela sonolência típica daqueles que comem demais. Seria um glutão, mas não agora, não ali.
Quando ele retorna ao escritório, dedica-se a leitura de uma entrevista dada por uma renomada anfitriã de eventos tais quais ao que ele hoje participaria. Perde-se nas palavras que ilustravam sensações ainda a serem descobertas e por ele vividas.
O turno da tarde recomeça espelhando as obrigações do da manhã. O relógio, no entanto, parece desacelerar o seu giro, fazendo com que ele se deixasse levar pelos sintomas típicos da ansiedade. Abre a gaveta e retira o seu calmante fitoterápico preferido, ingere um comprimido e caminha a esmo pelos espaços da empresa. O tempo haveria de acelerar.
Às dezoito horas ele já havia desligado o seu PC e entregado as tarefas do dia, sai do edifício sem a mesma cordialidade apresentada pela manhã. Opta por um táxi. No percurso vislumbra as cores e formas que se adensam pelas calçadas em profusão. Ajeita inconscientemente o colarinho da camisa. Checa o celular. Visualiza o convite na tela do aparelho. Passa a ponta dos dedos por sobre a imagem e imagina a sua textura. Fecha os olhos e aspira o ar aquecido do anoitecer.
Ele chega ao seu destino um pouco antes do horário. Observa a fachada curioso com o que ali haveria de haver. Caminha até a esquina a fim de acelerar o tempo. Analisa as vitrines. Cogita compras. Se apruma no reflexo das límpidas e reluzentes vidraças.
Pode observar ao longe uma pequena fila se formando em frente ao casarão. Seus parceiros para aquela noite de prazer irrestrito. Segue calmamente, mas em determinação rumo a sua posição na fila. Não fala com ninguém, apenas observa os curiosos comensais. Imediatamente a sua frente estava um casal. O homem aparentava ter pouco mais de quarenta anos, possuía uma barba onde alguns poucos fios grisalhos conferiam uma luminosidade extra ao rosto bonito. Trajava um terno cinza bem cortado e camisa branca com gola engomada. A mulher que o acompanhava devia ter cerca de trinta anos, trajava um vestido longo na cor azul, justo em seu quadril, possuía uma longa fenda por onde escapava parte de suas bem torneadas pernas.
O casal mais a frente era formado por um homem não muito alto, calvo, cerca de sessenta anos, sua companheira deveria estar na faixa dos cinquenta, ele trajava um paletó de tweed xadrez e uma calça marrom vincada. Ela um vestido florido predominando para o vinho. Ambos permaneciam na fila lado a lado com as mãos entrelaçadas.
Mal havia ele finalizado a sua análise daqueles que estavam a sua frente, percebeu que a fila já havia crescido em número de pessoas. Os convivas chegavam, em geral, em duplas, até onde conseguia ver ele era o único sem companhia. Três moças jovens conversavam descontraidamente um pouco mais ao fundo, visivelmente excitadas com a oportunidade. Um casal um tanto mais idoso também aguardava a liberação da entrada. Dois homens mais ao fundo se beijaram em cumplicidade.
Havia um universo naquela fila, e ele fazia parte dele, concluí satisfeito.
Enfim a porta do casarão se abriu e as pessoas começam a adentrar. Um homem alto e austero para do lado direito da entrada enquanto uma franzina moça confere um a um os convites para a entrada e retêm os celulares em nichos fechados a chave.
Quando finalmente ele adentra ao recinto, busca por seu lugar. O que partiria dali seria surpresa, o deleite dos sentidos, a exacerbação do corpo, um regresso aos instintivos desejos.
Sentado, ele fecha os olhos e absorve o ar, deixando com que o cheiro doce o embriagasse. A iluminação era aconchegante, o toque no tecido que cobria a superfície da mesa arrepiava os pelos do braço, a decoração um vislumbre. Ao centro, um cartaz informava o programa da noite.
O que se sucedeu foi uma profusão de sentimentos, a cada novo ato uma nova sensação. O caldo adocicado escorria pelo canto de sua boca adormecida. O jogo de luzes e sons criavam o clima de cada seção. As texturas e aromas brincavam com suas expectativas. Podia ver nos semblantes em êxtase que os demais compactuavam de seu deleite. O doce, o salgado, o azedo e o amargo, os sabores mesclavam-se em cada nova experimentação.
No final as luzes se acendem em amarelo. O cheff apareceu sobre um improvisado palco e reverência os ali presentes. As palmas irrompem em entusiasmo. Ao fundo, um cartaz iluminado agradecia a presença de todos. Ali lia-se: Obrigado por participar da orgia, uma experiência gastronômica e multissensorial.
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