O dia se postava claro após a lamuriosa tempestade da noite anterior. Ela se observava pelo reflexo nublado da vidraça que dava para o quintal da frente. O muro baixo deixava ver a rua ainda vazia. Na mão direita, a velha xícara, herança de sua falecida mãe, amornava os seus dedos ao mesmo tempo que continha o café recém-coado. Seu rosto desgastado pela noite insone contrastava com o brilho que fugia de seus olhos marejados. Seus pensamentos esvaíam-se sem germinar, seguiam calados ao além muro, desprovidos de mensagem, nem mesmo lamento ou murmúrio. Apenas o desapego na criação de novas memórias, e de igual maneira, no reviver daquelas passadas. Ela preferia ser leve, mesmo acometida por demasiado peso.
O vento assovia por entre as telhas, a despertando para manhã. Um giro de corpo permite que flerte com o desabitado lar. Não escolhera a solidão, ela lhe fora dada como premiação a outras escolhas. Viver será sempre um risco, mas ainda melhor que o morrer. Deposita a xícara ainda esfumaçante por sobre o aparador.
Caminha lentamente rumo ao fundo, uma porta entreaberta lhe permitia a passagem para o cômodo de dormir. A pouca luz que adentrava pelas fretas se punham suficiente ao olhar. Abre a porta esquerda do velho guarda-roupas e vasculha os tecidos dependurados em busca de uma opção. Detêm-se no vestido vermelho, velho companheiro das noites vividas. Acaricia o pano desgastado pelo tempo. Atreve-se a prová-lo. Seu corpo pouco lembrava o de outrora, as curvas haviam se multiplicado na horizontal. Agora distante da esguia mulher que dançava em vários braços. Ela se via outra.
Desce as mãos pelo corpo serpenteando na tentativa de modelá-lo. Se sente feliz. Talvez não muito, mas o suficiente para o agora.
Senta-se sobre a cama ainda desarrumada, permaneceria assim. Apanha a sandália dourada de strass e a calça. Levanta-se testando o seu equilíbrio. Suas panturrilhas quase que de imediato tomam uma forma mais acentuada e elegante. Ela leva as mãos à cabeça enfiando e agitando os dedos por entre os cabelos. Desliza novamente as mãos pelo seu dorso. Se vê satisfeita.
Vira-se e caminha de volta até sala. Apanha a xícara com o café e sorve mais um gole. Já não estava quente, mas trazia o suficiente conforto ao corpo permanentemente frio. Um rápido olhar para o relógio lento dependurado na parede informa haver chegado a hora.
Ela abre a porta e olha por uma última vez para o espaço que a abrigou ao longo dos últimos anos. Não haveria de retornar. Bate à porta atrás de si sem se preocupar em trancá-la. Desce os três degraus que a separa da pequena trilha de cimento envelhecido que a conduz até a calçada.
O ar gelado da manhã adentra as suas narinas com um cheiro fresco de eucalipto. Resultado da essência emanada pelas altas árvores que ladeavam as casas pela parte de trás. Sob o céu azul as copas bailavam com o vento insistente. Ela esboça um sorriso. Vira-se mais uma vez e observa a fachada enegrecida pelo tempo da casa a qual habitou.
Segue cambaleante rua abaixo tal qual as verdes folhas que farfalham nos galhos superiores. Estava decidida. Não havia por que se acovardar. O dia chegara e com ele o ato final.
Estranhamente deserta a rua se estendida a sua frente. O caminhar sem pressa permitia o olhar atento a tudo aquilo que esteve ausente. Não se lembrava da vizinhança. Nunca se apercebera da pueril decoração dos jardins. Anões e suas Brancas de Neve mesclavam-se a relva aparada. As únicas testemunhas de sua inesperada partida.
A parada do ônibus não ficava distante. Apenas duas ruas abaixo de onde estava. Caminha decidida, mas sem euforia. Mentalizava o ato, esboçava os trejeitos, murmurava baixo a sua fala.
Ela avista ao longe uma senhora sentada aguardando pelo ônibus. Conforme se aproximava a forma se distinguia. A velha trajava um conjunto preto. Resultado de um luto perpétuo, imagina ela. Os cabelos brancos presos sem destreza no alto da cabeça deixavam escapar os revoltosos fios. A face enrugada, os olhos caídos, o sorriso inexistente. Seriam as bruxas tristes? As mãos, tremulas da mulher, indicavam frio. Ou seria o mal de Parkinson?
Ela se aproxima e detêm-se um pouco a frete. A velha não lhe dirige a atenção. Permanecia inerte observando um algo distante, coisas que somente ela podia ver.
Ambas permanecem no silêncio da manhã sem se notarem. De súbito, um ônibus aparece no final da rua após uma curva acentuada. Ela avança e estica o braço sinalizando ao motorista que gostaria de embarcar. O veículo para a sua frente e ela sobe, não sem antes observar mais uma vez a velha senhora que permanecia inerte no banco da parada. O motorista dá a partida e ela observa a silhueta negra sumir ao longe.
Senta-se ao fundo observando pela vidraça a paisagem urbana. Vazios habitados, pensa ela. A viagem segue sacolejante até o centro da cidade. Ela desce de fronte a um prédio azul de arquitetura neoclássica já desgastado pelo tempo e pela falta de manutenção. Ela se identificava com o pequeno edifício, tal qual a ela própria, ele já havia brilhado. Hoje servia de morada aos ratos, os quais, deixavam algumas muitas pessoas também viverem por lá.
Ele caminha rumo a uma rua estreita. Segue pela via até o final virando à direita numa larga avenida. Mais alguns passos e ela chegaria ao seu destino, um grande salão adornado na fachada por duas colunas alvas. A imponente porta de madeira envernizada estava aberta. Ela adentra o espaço e segue pelo corredor central buscando pelo local anteriormente acertado. Senta-se e observa.
Por cerca de uma hora ela ali permanece imóvel e calada. Durante aquele tempo o espaço havia se enchido com outras pessoas. Homens, mulheres e crianças. Todos em um eufórico transe. As falas se somavam em um turbilhão. Na frente, sobre o palco elevado, ele profere a palavra-chave apontando para ela em seguida.
Ela se levanta. A cabeça levemente curvada para a frente. Caminha mexendo os ombros e proferindo palavras ininteligíveis. A voz assume um tom mais grave, fazendo com que sua garganta coce. Ela tosse e cospe no chão lustroso. Fita os olhos dele sem se abater.
Sobe no palco e o confronta. Ele profere palavras ao microfone enquanto lhe toca a cabeça com a mão direita. Ambos entram em sincrônica discussão. A plateia se alvoroça. Gritam palavras de ordem. Expurgam os seus próprios demônios. Ela agita o corpo como se tentasse se livrar de amarras invisíveis. Permanece curvada. Os cabelos caem pela lateral ocultando parcialmente a sua face. Seus olhos giram. Sua boca franze. Seus dedos se contraem.
De súbito ela cai. Deita-se no piso acarpetado. Abre os braços e as pernas, formando com o corpo uma grande estrela vermelha. Ele debruça-se sobre ela. Contínua em sua fala incansável. A luta entre o bem e o mal.
Ela se põe imóvel. Alguns segundos seguem sem que ela saiba precisar. Seu semblante se transforma. Ela sorri em leveza. O homem lhe estende a mão. Ela levanta e gira sobre o próprio corpo. Estava leve. Liberta.
De súbito o seu olhar se detém sob um semblante conhecido. Sentada no meio da multidão estava a velha que vira na parada de ônibus. Seu corpo gela. O alvoroço da multidão, no entanto, faz com que ela a perca de vista. Não a encontrou mais.
Permanece no palco até o final do evento. Alguns dos presentes insistem em lhe abraçar. Todos comemoram o feito. A catarse fora coletiva.
Ela volta ao lugar onde estava anteriormente sentada. Quando o espaço se esvazia, apenas algumas poucas almas permaneciam no recinto. Ele segue pela direita adentrando uma porta localizada aos fundos. Segue por um corredor e sobe um lance de escadas. Uma grande e pesada porta de madeira adornada separava o corredor da sala onde ele estaria. Ela entra sem bater. Ambos se olham. Os brilhos nos olhos são compartilhados. Ela se aproxima. Ele levanta as mãos a segurando pelos ombros.
- Parabéns! Você foi incrível. Diz ele com um sorriso no rosto.
Entrega a ela um envelope branco sem marcações onde um volume indicava o conteúdo.
- Eis o de hoje. Desça que eles estão lhe esperando. A um país para visitar. Muito dinheiro a se ganhar. Você é o nosso melhor demônio.
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